Zapatistas, narco e terror: Chiapas a ferro e fogo
Nas primeiras horas de 1 de Janeiro de 1994, indígenas encapuçados e armados ocuparam as principais sedes municipais de Chiapas. Num comunicado, declaravam guerra ao exército mexicano e exigiam a transformação radical da sociedade do país. Formado ao longo de anos na selva Lacandona, o então autointitulado Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) atuou rápido e certeiro. Oficialmente, o conflito durou 12 dias, mas a luta política zapatista por direitos fundamentais – terra, habitação, educação, saúde, preservação do ambiente, dignificação dos povos indígenas – nunca terminou.
A três décadas dessa manhã que surpreendeu o México, os zapatistas tentam manter a cabeça à tona, no meio de um turbilhão de violência extrema que varre aldeias, vilas e cidades de todo Chiapas. Nos últimos dois anos, o estado mais a sul do país transformou-se no mais recente e mais sangrento campo de batalha entre as duas maiores organizações criminosas do México – o Cartel de Sinaloa e o Cartel Jalisco Nova Geração (CNJG). Esta guerra que envolve narcotraficantes, paramilitares, pandilheiros centro-americanos, polícias e políticos corruptos, sob o olhar passivo do governo federal, exponencia esse outro combate silencioso de 30 anos abafado pela grande media – a luta silenciosa, mas feroz, do Estado mexicano contra os zapatistas e defensores locais da terra do ambiente e dos direitos humanos e sociais, vinculados ou não ao EZLN.
Encurralado pela violência, o EZLN comemorou sem alarido os 30 anos do distante 1 de janeiro de 1994. Pouco havia que festejar, admitia o subcomandante Moisés no início de novembro do ano passado. “As principais cidades do estado de Chiapas, no sudeste do México, estão em completo caos. As presidências municipais são ocupadas pelo que chamamos de ‘assassinos legais’ ou ‘crime desorganizado’. Há bloqueios, assaltos, sequestros, extorsão, recrutamento forçado, tiroteios. Esse é o efeito do apadrinhamento do governo estatal e da disputa pelos postos [políticos] que está em curso. Não estão em causa propostas políticas, mas sim sociedades criminosas”, descrevia o subcomandante Moisés. “É nosso dever”, continuava, “ao mesmo tempo que convidamos [os simpatizantes e apoiantes do EZLN a vir a Chiapas], desencorajá-los. Ao contrário de outros anos, temos que dizer que não é seguro. Gostávamos que viessem, mas não o recomendo”.
Ao mesmo tempo que lançava o apelo, o EZLN dava os últimos retoques numa intensa transformação interna, que anunciou em mediados de novembro em “Nona Parte: A Nova Estrutura da Autonomia Zapatista”. No comunicado, revelava uma reestruturação profunda (discutida e consensual) do EZLN, com o objetivo de “aumentar a defesa e segurança dos povoados e da mãe terra, no caso de agressões, ataques, epidemias, invasão de empresas depredadoras da natureza, ocupações militares parciais ou totais, catástrofes naturais e guerras nucleares.” As medidas incluíam o fim dos Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas e das Juntas de Bom Governo em Chiapas, assim como a suspensão de novos acordos com organizações, coletivos e grupos de solidariedade. As comunidades zapatistas, os famosos Caracoles, mantêm-se ativos, mas estão fechados ao exterior até nova ordem.
“Preparamo-nos para que sobrevivam os nossos povos, inclusivamente isolados uns dos outros. Como desde há 30 anos, a nossa luta é pela vida”, sublinhava o subcomandante Moisés.
Morte e resistência
Em setembro de 2021, na reportagem “Um cartel levanta alertas na fronteira guatemalteca com o México”, do jornal salvadorenho El Faro, Benítez Manaut, investigador da Universidade Nacional Autónoma de México, afirmava: “Há muitas notícias sobre a chegada do Cartel Jalisco [Nova Geração] a Chiapas. (…) Alguns dizem que está a ser duramente golpeado no [estado mexicano de] Jalisco e está a entrar em negócios diferentes ao narcotráfico para evitar atrair a atenção da DEA”, a agência norte-americana antidrogas.
O que para o investigador eram suspeitas, para os habitantes de Chiapas já era mais que sabido. A 7 de Julho de 2021, um dos líderes locais do Cartel de Sinaloa, grupo criminoso que dominava até então a região, foi assassinado perto de Tuxtla Gutiérrez, a capital chiapaneca. O CJNG reivindicou a emboscada a Ramón Rivera Maravilla, conhecido por “El Júnior”.
O ataque do CJNG foi um aviso à sociedade chiapaneca: preparem-se para uma guerra entre carteis. Muitos se preocuparam, mas poucos se surpreenderam. Há vários anos que a pressão do crime organizado sobre as comunidades indígenas e rurais, sobretudo, vinha em crescendo. Apenas dois dias antes da execução de “El Júnior”, o ativista Simón Pedro Pérez foi morto à queima-roupa no mercado de Simojovel, no centro do estado. O defensor de direitos humanos tinha exposto à Secretaria de Governo de Chiapas vínculos entre políticos do município indígena de Pantelhó, nos Altos de Chiapas, e grupos armados associados ao narcotráfico.
Na missiva, Pérez denunciava também, em nome da comunidade, a ocupação de povoações rurais e comunais pelo crime organizado e o deslocamento forçado das populações que aí residiam. Com data de 26 de junho, o documento relatava ainda o assassinato recente de 11 pessoas e a intimidação durante as eleições estatais de Chiapas, vinte dias antes. Segundo os habitantes de Pantelhó, grupos criminosos ameaçaram-nos de morte e de lhes roubar tudo o que tinham, caso não votassem no candidato que “mais lhes interessava”.
“A morte de Simón Pedro é consequência da injustiça, do narcomunicípio, do narcotráfico, do crime organizado em Pantelhó (…) Que o sangue de Simón Pedro seja a semente para a paz e para a libertação de Pantelhó”, cerimoniou o padre Marcelo Pérez Pérez no velório do lutador social.
O apelo foi inútil. A 7 de julho, dois dias depois da morte de Simón Pedro Pérez, Pantelhó entrou em rebelião. Fartos da violência e da intimidação, dezenas de populares, indígenas tzotziles y tzeltzales, formaram o grupo de autodefesa “El Machete”. Nessa quarta-feira de julho, irromperam pela sede do município, enfrentando a tiros o grupo de sicários “Los Herrera”, que acusavam de espalhar o terror na região, em conluio com o narco e o poder político local.
No confronto, elementos da Guarda Nacional, do Exército e das polícias estatal e municipal foram atacados. Nas semanas seguintes, entre duas e três mil pessoas das comunidades rurais vizinhas fugiram com o que puderam das suas casas, no meio de uma revolta generalizada, com saqueios de lojas, instituições públicas, bloqueios das vias e tiroteios. No final de julho de 2021 o Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas (Frayba), contabilizava 12 mortos em Pantelhó, às mãos de “grupos criminosos com conexões políticas”.
Na Cidade do México, o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) repudiou os atos. “Em nenhum caso se aceita que se armem grupos chamados de autodefesa”, atirou. “Chiapas à beira da guerra civil”, declarava o EZLN num comunicado assinado pelo subcomandante Galeano, publicado em setembro desse ano.
Um inferno em estado de sítio
O vazio do poder na estrutura do Cartel de Sinaloa, depois do assassinato do líder local Ramón Rivera Maravilla, “El Júnior”, e as rivalidades e inevitáveis traições que se seguiram internamente, detonaram, nesse violento julho de 2021, a bomba-relógio que os chiapanecos temiam. Com uma violência extrema, o Cartel de Sinaloa e o CNJG desataram o inferno em Chiapas.
Desde então, centenas de pessoas desapareceram em Chiapas. Corpos desmembrados são espalhados em pontos sensíveis, como advertência. Nesta cultura de terror que engrossa continuamente o número de deslocados das zonas rurais, sicários “descarregam as armas em frente à população para aterrorizá-la e para que faça o que lhes pedem; (…) [também] entram nas comunidades, em carrinhas, e tiram as pessoas das suas casas”. As denúncias são da Diocese de San Cristóbal de las Casas que, numa carta aberta publicada em dezembro passado, descrevia um Chiapas em “estado de sítio”.
Os alertas surgem de todos os lados. Na tentativa de controlar pontos estratégicos do estado, o narcotráfico isola povoações e municípios inteiros. “Operações stop, bloqueios e incursões de grupos criminosos, em companhia da Polícia Estatal e Municipal, são o pão nosso de cada dia”, confirma também o Frayba. Sem o fluxo de produtos do campo, as bancas dos mercados esvaziam-se de tempos a tempos. Escolas, comércios e centros turísticos fecham sem data para reabrir. Recentemente, agentes turísticos locais que trabalham com operadoras internacionais cancelaram viagens a Chiapas, relatando tentativas de extorsão e incidentes recentes com caravanas de turistas apanhados por tiroteios entre bandos.
Pouco mais de dois anos depois da explosão da violência, a brutalidade estende-se, como uma sombra, por todo Chiapas. Cada vez mais para norte – San Cristóbal de las Casas, Palenque, Ocosingo – até ao estado vizinho de Tabasco, onde se registaram ataques a instalações policiais. Suchiate, o posto fronteiriço entre o México e a Guatemala, famoso pelas caravanas migrantes há uns anos, também já caiu. A mítica selva Lacandona onde nasceu o EZNL, converteu-se na nova joia do tráfico da cocaína. As pistas de avião que antes apoiavam as populações em emergências, estão agora nas mãos do narcotráfico.
Mas é em Frontera Comalapa que a situação é especialmente séria. Cara-a-cara com a Guatemala, o município vive num contínuo estado de terror, com um sem-fim de ataques armados, execuções, desaparecimentos, extorsões, recrutamentos forçados por parte do crime organizado, e a (já normalizada) debandada de milhares de pessoas aterrorizadas em busca de refúgio e de proteção (que o Estado não lhes dá).
A luta pelo controlo de “rotas cruciais para o tráfico de narcóticos e de migrantes” agudiza-se com o passar do tempo, indica o observatório InSight Crime no relatório “Guerra entre CJNG e Cartel de Sinaloa por rotas de tráfico desde a Guatemala dessangra Chiapas”. No artigo “Crise de insegurança em Chiapas”, a revista Segurança nas Américas descreve como, ao longo de uma franja de 80 km na linha que divide Chiapas da Guatemala, e com especial incidência em Frontera Comalapa, se movem em alianças com o Cartel de Sinaloa e o CNJG, pandilhas centro-americanas, grupos paramilitares regionais e ex-elementos da Brigada de Forças Especiais Kaibil, a unidade de elite do exército da Guatemala, que se dedicam “ao tráfico de armas e treino de carteis mexicanos”. O famoso grupo guatemalteco Los Huistas entra também nesta equação como variável aleatória: antigos aliados do Cartel de Sinaloa, operam agora com o CNJG.
Por outro lado, as crescentes detenções de armas de alto calibre e de traficantes de cocaína, em especial sul-americanos, têm mostrado que o problema é muito mais antigo do que se pensava. Em maio de 2023, recorda o InSight Crime, “um coronel guatemalteco revelou como oficiais corruptos ajudaram o CJNG a traficar cocaína pelo país, desde 2017. E em abril [de 2023], os Estados Unidos imputou Ana Gabriela Rubio Zea, assinalada como a cabecilha de uma rede internacional de intermediários que dedicava a comprar percursores químicos para a elaboração de fentanil a nome dos Chapitos, os filhos de Joaquín Guzmán Loera, ‘El Chapo’, a partir da sua base na Guatemala”.
Aa autoridades do país centro-americano têm vindo a alertar o México para incursões armadas do CNJG no seu território e enviaram milhares de militares para a fronteira com Chiapas. Segundo algumas fontes, já houve confrontos abertos entre os narcotraficantes mexicanos e o exército guatemalteco.
Vítimas e sicários, lobos e cordeiros
O conflito não só escala a nível internacional, como tende a piorar internamente. Novos grupos criminosos estão a surgir em Chiapas e a desafiar de peito aberto o Cartel de Sinaloa e o CNJG. O Cartel de San Juan Chamula é um deles. “É a primeira organização indígena da delinquência organizada no país com táticas similares às das maras salvadorenhas”, descreve a revista Segurança nas Américas.
Num novo golpe, este mês deu-se a conhecer em Tuxtla Gutiérrez, a capital do estado, o também novo Cartel de Chiapas e Guatemala. Um corpo decapitado pendurado numa ponte e uma manta com ameaças ao Cartel de Sinaloa e ao CJNG, foram o seu cartão de apresentação. No sábado, 27 de janeiro, uma mensagem ao lado de um cadáver abandonado no município de Viila Corzo, alertava: “Chiapas é para os chiapanecos. Isto vai acontecer a todos os que tentaram vir e tirar-nos a paz, sejam Jalisco ou Sinaloa, assim os vamos tratar. Atenciosamente, Cartel de Chiapas e Guatemala”.
Por enquanto, desconhece-se a real força deste cartel nem quem está detrás, mas é cada vez mais evidente que, num contexto de violência (e resposta a ela), “a delinquência organizada vai comendo os grupos de poder”, analisa Mario Ortega, do Frayba, na reportagem de Animal Político, “O EZLN aproxima-se do seu 30º aniversário no meio de crise de segurança em Chiapas”. “É como uma multinacional que vai incorporando as lojas locais” – os grupos armados “históricos de Chiapas” liderados por caciques que usam a violência para açambarcar terras; as organizações sociais transformadas em paramilitares; os grupos criminosos vindos de outros lados do México; sem esquecer “as autoridades municipais”, acrescenta o coordenador da associação civil Outros Mundos, Gustavo Castro. “Os cartéis vão sobre a estrutura mais débil e controlável dos territórios, que são os ejidos [propriedades rurais de uso coletivo] e os municípios: desde aí podem controlar tudo em termos políticos, económicos, financeiros, de caminhos e a força pública. O tráfico implica o controlo do território e o seu objetivo é dominar cada presidência municipal”, explica.
Neste contexto tão complexo, todas as luzes e todas as sombras confundem, invertem-se em negativo, enganam. Em Chiapas, na relação vítima – sicário já não se sabe quem é quem. “É cada vez mais difícil entender se os donos das terras que bloqueiam uma estrada têm um interesse genuíno ou se são obrigados pela criminalidade organizada; e tornou-se complicado distinguir uma marcha espontânea pela paz e uma promovida por um cartel para agredir o grupo rival”, lê-se em Animal Político.
Os exemplos desta confusão absoluta abundam e um é particularmente simbólico – as autodefesas “El Machete”. Eles mesmo, o grupo que surgiu em julho de 2021 em Pantelhó, depois da execução do ativista social Simón Pedro Pérez, para expulsar os sicários aliados ao crime organizado que aterrorizavam a região, em conluio com as autoridades municipais.
Pois bem, dois anos depois, em julho de 2023, Pantelhó foi novamente tomado de assalto por homens armados, desta vez “militares civis”, como se descreveram. A história repetiu-se, mas tipo espelho – segundo os novos autodefesas, os antigos libertadores do povo, “Los Machetes”, eram agora as bestas. “Estamos cansados de ser extorquidos, atropelados, humilhados e assassinados”, declarou o novo grupo à população, após expulsar “Los Machetes” da sede municipal. “São mais de 31, os desaparecidos por culpa de ‘Los Machetes’. Além dos homicídios que cometeram nas redondezas. Tem que haver uma mudança, senão o governo local vai continuar a prejudicar-nos e a agir como um grupo criminoso. (…) Queremos a paz social na nossa localidade. Queremos respeito aos direitos humanos, respeito aos direitos políticos, respeito aos direitos sociais. Não queremos que um grupo armado continue a impor autoridades segundo a sua vontade, marionetas que só estão à mercê deles. Já não, senhores.” Quem é quem nesta história? Não se sabe.
No Palácio Nacional, lá longe na Cidade do México, o governo pouco diz. Tal como em 2021, quando começou o caos, em conferências de imprensa o presidente López Obrador minimiza constantemente os alertas, as denúncias e pedidos de ajuda e proteção que chegam do sul. Ao mesmo tempo, desestima as exigências de quem, como a Igreja Católica, pede uma e outra vez “o desarmamento de grupos criminosos, a recuperação do território das famílias, uma declaração oficial contra a exploração mineira e bens naturais e a segurança dos defensores dos direitos humanos”.
Há uns meses, quando as redes sociais fervilharam com vídeos que mostravam a “entrada triunfal” do Cartel de Sinaloa em Frontera Comapala, a resposta do presidente foi lacónica: “É muita propaganda dos conservadores e dos cartéis”. Na verdade, para López Obrador, a pintura dantesca que se faz de Chiapas parece ser pouco mais que uma tentativa de o atingir pessoalmente e de desestabilizar o governo federal e o governo estatal de Chiapas, liderado desde 2018 por Rutilio Escandón Cadenas, do Movimento de Regeneração Nacional, o partido do Presidente mexicano.
Este ano haverá de novo eleições para governador de Chiapas. Em final de mandato, Rutilio Escandón deixa Chiapas com níveis de pobreza na ordem dos 76% (há anos que é o estado mais pobre do país) e uma população em pânico. Nos últimos 10 anos, a perceção de violência dos habitantes do estado aumentou 34%, divulgou há semanas o Instituto Nacional de Estatística e Geografia.
As eleições de junho próximo em Chiapas ameaçam aumentar ainda mais os níveis de violência, como acontece em todo o México nos períodos eleitorais, onde não faltam candidatos assassinados e ameaças de todo o tipo. Mas em Chiapas há um fator mais. Foi precisamente depois das eleições de Junho de 2021 que o estado mergulhou de vez no caos. A 6 de Junho desse ano, as agressões e intimidação do crime organizado impediram mais de 160 mil eleitores chiapanecos de votar. Muitos outros foram às urnas com a cabeça a prémio, elegendo os candidatos que os sicários impunham, armas em riste prontas a disparar.
Zapatistas, a outra guerra
Até ao momento, “não se conhece nenhum ataque da criminalidade organizada contra as aldeias zapatistas”, comentava há semanas Mario Ortega, do Frayba. O que não significa, sublinha, que os zapatistas não sejam vítimas de agressões. A lista é longa. As comunidades indígenas e rurais, muitas delas apoiantes do EZLN, são as principais vítimas destes conflitos cruzados. E o defensor de direitos humanos relembra que há muitas formas de agressão, como a ostensiva e permanente presença militar em Chiapas desde a insurgência zapatista, em 1994.
Em 2021, quando não foi mais possível ocultar a violência em Chiapas, o governo mexicano enviou mais soldados para o estado. Para uma população acossada há décadas pelo exército, o resultado não pôde ser pior. “A intensificação da presença militar soma-se ao medo e terror das pessoas deslocadas à força”, criticava o Frayba a InSight Crime, no artigo “Grupo de Autodefesa conforma-se após ataque criminoso em Chiapas, México“. Ao reforçar a presença militar na região, o governo tentou matar dois pássaros com uma pedra só: dar uma resposta (ineficaz e inútil) à crise de violência; e reforçar a vigilância sobre o EZNL.
Não é paranoia. Uma filtração de emails da Secretaria de Defesa Nacional (Sedena) do México, em 2022 (Sedena Leaks), desvendou que, décadas depois do longínquo 1994, o Exército mexicano continua “obcecado” com as bases do EZLN em Chiapas. Uma reportagem do El País publicada em Outubro de 2022, “Do Tren Maya aos simpatizantes ‘de aparência estrangeira’: o assédio constante da Sedena aos zapatistas”, exibia como os serviços de segurança vigiam muito de perto o EZLN, com infiltrados e dossiers volumosos com informação sobre eventos, líderes e simpatizantes do movimento, incluindo fichas pessoais e muitas fotografias.
Na base deste “assédio”, relevou Sedena Leaks, está a oposição zapatista aos grandes empreendimentos federais em Chiapas. O EZLN tem sido voz constante na luta contra megaprojetos energéticos, mineiros, agrícolas, turísticos e de transporte na região. O combate frontal ao Tren Maya (Comboio Maia), uma nova linha férrea que percorre Chiapas, o Caribe mexicano e a Península de Yucatán, causa especial urticária no Palácio Nacional. Este é projeto insígnia do presidente López Obrador e segundo o executivo mexicano, a infraestrutura tem a grande meta de desenvolver o sudeste esquecido do país. Porém, para o EZLN e várias associações indígenas, é tão-somente uma estratégia mais de despojo dos povos originários, de destruição da “mãe-terra”, de imposição e reforço da militarização e controlo de Chiapas e do território indígena.
Real ou não, esta desconfiança tem fundamentos históricos, e reforça-se ainda mais agora, com a onda de criminalidade em Chiapas, da qual as autoridades são as únicas responsáveis, segundo o EZLN. “A presença de grupos armados que atuam em conjunto ou com a complacência de funcionários do governo na zona de Chiapas”, não é novidade para ninguém, recorda o observatório InSight Crime. “Nos finais de 1997, um grupo paramilitar massacrou 45 crianças, mulheres e homens tzotziles – todos eles membros de Las Abejas de Acteal – quando participavam num encontro de oração, que ficou conhecido como o massacre de Acteal. Vinte e dois anos depois, o governo federal admitiu a sua participação ao não intervir deliberadamente, para permitir que o grupo perpetrasse a matança”.
Na altura, a chacina na pequena aldeia indígena mobilizou personalidades de todo o mundo, entre as quais José Saramago, e incidiu os holofotes da media global na guerra do Estado mexicano contra o ELZN. Pressionado, o México foi obrigado a mudar de estratégia, começando o que Frayba chama de “guerra integral de desgaste”. “As ações que chamavam demasiado a atenção foram substituídas por operações menos visíveis, mas contínuas, que desgastam a população, dia após dia: uns tiros numa comunidade, umas famílias deslocadas de outra, uns jovens presos sem provas”, lê-se em “O EZLN aproxima-se do seu 30º aniversário no meio de crise de segurança em Chiapas”.
A partir de 2000, com o fim do regime do Partido Revolucionário Institucional, após 70 anos no poder, o novo governo do Partido Ação Nacional mudou a estratégia contra-insurgente, relata Mario Ortega, do Frayba. “Passou-se então a priorizar a cooptação: muitas organizações de luta acabaram por ser aliadas do Estado, transformando-se em corporações que recebiam benefícios, como cargos políticos para os seus líderes, a nível municipal, ou até estatal, como deputados.”
Rapidamente, estas organizações passaram a fazer o “trabalho sujo”, assegura o defensor de direitos humanos. “Deixou de haver um impulso direto da violência armada contra o EZLN a nível federal, mas sim uma permissividade, como no caso da Organização Regional de Cafeicultores de Ocosingo (ORCAO), umas dessas organizações corporativistas cooptadas”. Desde 2019 até hoje, relata, a ORCAO, “que até finais dos anos 90, e antes de receber programas sociais, esteve ligada ao zapatismo, realizou mais de 110 ataques armados contra as comunidades da região zapatista de Moisés e Gandhi, além de queimar escolas e armazéns de café. Sequestrou e torturou bases de apoio do EZLN e, em Maio de 2023, um destes zapatistas, Jorge López Santiz, recebeu um impacto de bala no peito”, sobrevivendo com sequelas.
Esta mesma ORCAO, refira-se, é também citada no artigo “Crise de insegurança em Chiapas”, da revista Segurança nas Américas, como um dos grupos paramilitares que atua no violentíssimo e disputado município de Frontera Comalapa, ao lado de narcos, ex-soldados a soldo e gangs mexicanos e guatemaltecos.
A luta contra as comunidades zapatistas e a população rural de Chiapas também foi económica. A partir de 2000, seis anos após a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte entre o México, EUA e Canadá, o cerco apertou-se ainda mais, abrindo espaço ao cenário atual de violência e narcotráfico. A Animal Político, Gustavo Castro, coordenador da associação civil Outros Mundos, explica que medidas decorrentes da liberalização do mercado, como o “PROCEDE - Programa de Certificação de Direitos e Titulação de Solos, causaram uma crise no campo que afetou o controlo territorial do EZLN”. Esta debilitação pode ter repercussões no momento atual. “Os ejidos e bens comunais servem de barreira à entrada das organizações criminosas. A presença do EZLN, que proíbe nas suas comunidades a plantação de estupefacientes, continua a representar um problema para os planos de expansão territorial do crime organizado”, explica.
Com uma crise de segurança sem precedentes, quem conhece Chiapas de perto alerta: o ataque direto do narco aos zapatistas pode ser uma questão de tempo. A resistência civil generalizada também.